extra

E agora, José?

A experiência existencialista do ator Zé de Abreu no Marais

Por Juliana Sayuri
De Paris
[22/11/2014]

Agora, José é só José. Carreira feita no Brasil, estrelando mais de 25 filmes e 50 novelas, José de Abreu decidiu dar um tempo do Rio. Abriu o armário, escolheu 4 jeans, 4 camisas e 10 camisetas e embarcou num sabático para repensar a vida em Paris. Uma decisão “insólita e inusitada”, nas palavras do ator de 68 anos. Mas José é um cara de sorte, c’est la vie.

Agora, José quer se encontrar. Quer flanar, ler, ter tempo. Em outras palavras: ter uma experiência existencial. Pediu uma taça de vinho, “bom pro colesterol”, conversando tranquilamente numa esquina no Marais. Tarde de sol, camiseta listrada, barba por fazer e fios grisalhos, José lembrou, durante um café de quase três horas no fim de setembro, o caminho, do exílio ao divã, de Pelotas (RS) a Itaipava (RJ), que o levou de volta a Paris.

Desta vez, Paris lhe fisgou num momento muito diferente. Outros tempos: militante preso em 1968, com o amigo – o outro Zé, Dirceu –, o ator partiu para o exílio no fim de 1972. Foram 11 dias a bordo do MS Giulio Cesare, última travessia transatlântica do navio, entre Santos e Lisboa. José desembarcou em Cannes, depois tomou um trem de Nice a Paris. Aos 27 anos, fugido da ditadura, lembra do frio e curiosamente de um coturno estilo militar que lhe esmagava os pés, enquanto perambulava perdido na cidade atrás de um endereço no 7o arrondissement – mas a sorte virou: na noite seguinte, assistiu extasiado a um show histórico do Pink Floyd com o Ballet de Marseille. De Paris, “muito caretinha na época”, passou para Londres e Amsterdã, depois mais uns seis meses na Grécia, e voltou ao Brasil em 1974.

Após a decisão “insólita”, José procurou, na internet, apartamentos disponíveis em Lisboa e Barcelona, mas nada lhe atraiu 100%. Nas gravações de O Rebu, 38 dias em Buenos Aires, encontrou diversos endereços interessantes em Paris. Teria uns dias de folga, pediu uma pausa para o diretor, que lhe disse: “Cê tá loco?! Que comprar apartamento em Paris, o quê! Ah, vá comprar apartamento em Cuba!” José respondeu: “Eu tentei Cuba. Queria abrir uma pousada lá, mas eles não quiseram…”

José viu 14 endereços na cidade-luz. Cismou com um apartamento no Marais, perto, diz, do melhor falafel do mundo, do melhor entrecôte feito ao estilo gaúcho e de um ótimo barzinho de ostras. “O mercado imobiliário é tipo o do Rio, mas o Leblon é mais caro que o Marais – isso longe do mar, perto do mar não tem mais preço”, diz. Ao lado do Boulevard Filles du Calvaire, o apartamento ultrapassava um pouco o orçamento do ator, que fez o que qualquer brasileiro faria: pechinchou. “Eu disse, negócio seguinte: ‘gostei, mas tá muito caro, quero fazer uma contraproposta’. Não sei, mas me disseram que os franceses não costumam fazer isso. Enfim, pedi para tirar 80 mil euros do valor pedido pelo proprietário. O cara topou –por acaso, quer se mudar para o Brasil.” Assim, quatro meses e quatro dias após encontrar seu refúgio parisiense, José recebeu a chave do apartamento: toda minimalista, entre o branco e tons de cinza, a nova morada conta um banheiro pequeno, uma cozinha compacta, um quarto e uma sala. Ao lado da cama com lençóis coloridos, o livro Os Vencedores, de Ayrton Centeno.

Foi a segunda aquisição imobiliária do ator. Até pouco tempo, só alugava – “como filosofia de vida mesmo, que idiotice esse negócio antigo de ter casa própria, de se prender a um endereço”. Isso mudou, graças a uma egotrip ao lado de seu analista.

José começou a fazer análise por volta dos 54 anos, quando a quinta paternidade lhe pegou de surpresa. Tudo era questão de “tempo”. José foi casado com Neuza Serroni, com quem teve o primogênito Rodrigo, morto aos 21 anos, ao cair da janela do apartamento, em 1991. Depois, ao voltar do exílio europeu, José e Nara Keiserman se fixaram em Pelotas (RS), onde tiveram dois filhos, Ana e Theo. “Fui um pai super dedicado. Era outra época, John Lennon tinha acabado de abandonar a carreira pra cuidar do Sean e tal. Eu lavava fralda, acordava de madrugada. Tínhamos muito tempo”, lembra. Após a estreia de A Intrusa no Festival de Gramado, foi convidado por Roberto Talma para entrar na Globo. “Queria ir, mas tinha uma vida: casa, filhos, cachorro, papagaio, tartaruga… Mas, no fim, fui.”

No Rio, José e Nara tiveram outro filho, Cristiano, em 1982. Mas o ritmo nada lembrava Pelotas: “Era O Beijo da Mulher Aranha, filme, novela, ator, diretor, pai, tudo ao mesmo tempo. Não tinha mais tempo.” Depois, novamente divorciado, casou com Ana Beatriz Wiltgen – não tiveram filhos. Por fim, namorou com Andrea Pontual – a mãe de seu caçula, Bernardo, de 14 anos. “Por que te conto tudo isso: essa trajetória me levou ao divã. Na análise, descobri que não tenho medo da morte. Tenho medo da dor. Desde a década de 1970, na Europa, sempre me interessei por budismo e por hinduísmo. Li muito Allan Kardec também. Ioga, meditação, macrobiótica – como arroz integral desde 1972! –, tudo isso, filosófico, teológico, religioso, sempre me inquietou. Descobri que tudo bem não temer a morte, mas que é preciso respeitar a velhice. Ter respeito à velhice. Meu analista nunca disse: ‘Zé, você precisa botar os dois pés no chão’. Mas, um dia, eu disse: ‘Você tá querendo me dizer pra fazer um fio terra? Pra encostar um dedão no chão, no mínimo? Ele respondeu: ‘Se é assim que você entendeu, já é um avanço.”

Na época, José começou a namorar com Camila Mosquella. Foi ensiná-la a dirigir e, sem querer, Camila o atropelou. José se machucou, teve diversas fraturas e agora a lembrança no tornozelo, com pinos e parafusos. Depois do susto, decidiu encostar o tal dedo no chão: comprou o primeiro apartamento, no Rio. Viu que sabia guardar dinheiro e, após quitar o financiamento, abriu uma poupança, para depositar o mesmo valor da parcela todo mês. Um belo dia, tinha R$ 1,2 mi na poupança. Que fazer?

A ideia inicial: alugou uma casa por 15 dias em Itaipava (RJ) e convidou a família toda. Vingou, e o ator se animou para comprar a casa, pensando nos netos, no tempo, na velhice. No ano seguinte, alugou a mesma casa por 30 dias. Ninguém foi. Aí veio o estalo: ir embora por um tempo, arrumar um abrigo noutro país, onde a família será sempre bem-vinda.

Agora, José está sozinho. Quando estavam assinando o contrato do apartamento em Paris, Camila quis “conversar”: “Zé, esse sonho é seu, não é meu.” “Camila tem 33 anos. Quer ser mãe. Eu não quero ser pai de novo. Terminamos. Foi traumático, mas foi para o melhor”, diz José. Depois de quatro casamentos, é a primeira vez que o ator monta uma casa sozinho. Mas o universo está conspirando a seu favor.

Por acaso num bar parisiense conheceu um amigo brasileiro, mordomo do estilista Kenzo, que lhe fez uma listinha de móveis e utensílios domésticos traduzida para o francês, para ajudá-lo a mobiliar a casa. Por acaso também encontrou uma amiga brasileira no Café Charlot, que lhe indicou uma ótima professora de francês e de história da arte – José quer estudar os impressionistas. Por acaso no charmoso predinho do Marais, descobriu dois porteiros portugueses, fãs de novelas, que se dispuseram a ajudá-lo com a faxina. José teve dificuldades para abrir uma conta francesa, frustrado após diversos rendez-vous. Um dia, encontrou Maria Gadú na rua, que o convidou para seu show na Cité de la Musique, onde se sentou ao seu lado um senhor francês, fã do Nilo de Avenida Brasil e, por acaso, diretor do Crédit du Nord: conseguiu abrir uma conta premium.

Antes de sair do Brasil, José ganhou um visto de 3 anos com direito a trabalho, a carte de séjour de talents et compétences – e não fazia ideia do que isso significava, ou do que deveria fazer para validá-lo. Noites dessas, no bar Candelaria, de uma boliviana no Marais, conheceu uma diplomata francesa, de português impecável: por acaso, era uma das responsáveis por América Latina e Caribe no Quai d’Orsay. Descobriu que seu visto era vip, estilo jogador de futebol – e que o processo era super simples, no Instituto de Imigração, e ela poderia ajudá-lo.

Outra noite, esperando um táxi, viu-se ao lado de uma francesa linda, “muito linda”. José estava matutando a ideia de um documentário sobre Maurice de Hirsch, um barão alemão que salvou milhares de judeus na Rússia czarista. Conversando com a francesa, propôs dividirem o táxi, pois iam na mesma direção. Designer de joias, ela estava trabalhando na fashion week parisiense e, por acaso, é amiga de diversos diretores franceses. Dispôs-se a apresentá-los a José, se quiser procurar produtoras para o filme.

De todas as sortes, José valoriza uma: “A vida tá me dando uma chance de viver uma experiência diferente. Uma bela experiência existencial. Isso é o mais importante de tudo. É uma sensação imensa de liberdade, montar casa sozinho, lavar privada, fazer faxina, andar a pé, aprender. Ficar anônimo. Apesar dos turistas brasileiros e dos fãs portugueses, é muito mais tranquilo que no Brasil – no Rio, tinha a sensação de que estava sempre sendo observado.”

Agora, José está feliz, mais leve, mais livre. No nosso primeiro encontro, dia 29 de setembro, o ator ainda estava assustado e um pouco inseguro: “Eu me vejo sozinho, solteiro e duro em Paris”, dissera na tarde de sol. Passou a fossa, a “deprê” depois da separação. “Absorvi essa nova realidade. Tô adorando”, disse, mais alegre, mais confiante, no nosso último rendez-vous no Café Charlot, no dia 28 de outubro, uma tarde fria do outono europeu. Todo agasalhado, José sorria enquanto quebrava a casquinha do crème brulée e tomava expressos com açúcar mascavo. “O universo tá conspirando. Tô recebendo boas vibrações”, dizia o ator, que fica fora do ar até setembro de 2015, quando estreia na nova novela de Amora Mautner.

José perdeu o primeiro turno das eleições, por causa da greve da Air France. Perdeu o segundo, também com passagens compradas para o Rio, pois pensou que seria melhor não reencontrar Camila ainda. Mas acompanhou as campanhas presidenciais, um olho na TV, outro no Twitter.

Tuiteiro polêmico, aliás, José certa vez se declarou bissexual. “Foi por uma discussão, um cara me acusou de ser homofóbico. Respondi ‘cara, sou bi’. Foi um puta auê. Saí do armário sem nunca ter entrado nele. No Brasil, só vai preso puta, pobre e petista. Ser bi é minha sensação de minoria”, diz.
Em 1989, José participou da campanha de Roberto Freire, “por saudosismo do partidão”. Depois, de Lula. Filiou-se ao PT quando explodiu a AP 470, o mensalão. Criticou Lula e a presidente Dilma Rousseff, por não manifestarem solidariedade a José Dirceu, seu amigo há 50 anos.

Mas José diz que não quer saber de cargo político. Foi consultado para ser ministro da cultura e não quis. “Deus me livre. Sou uma quebra de decoro ambulante, não poderia ser ministro. Aí entrou a Ana [de Hollanda] que, aliás, só fez merda.” Cogitou, por uns dez dias, a possibilidade de disputar uma vaga de deputado federal, mas logo desistiu: “Até conversei com o Zé [Dirceu] e o Duda [Mendonça], mas o Lula me disse: ‘não vale a pena, seu papel mais importante é ser você; deputado tem 500, baixo clero, mas um cara na Globo que fala o que você fala, só você’. Para a Globo, sou prova de liberdade de expressão. Digo mesmo tudo o que quero.”

Dizendo tudo o que quer, José de Abreu ficou feliz com a vitória de Dilma. Do seu refúgio sabático na rive droite parisiense, ainda acompanha a rive gauche tropical. “Precisa avançar agora. O primeiro mandato foi mais contido. O mínimo que se espera no novo governo é algo mais forte. Precisa avançar, pender mais para a esquerda, radicalizar. Criminalizar a homofobia, defender direitos das mulheres e das minorias, liberar a maconha. Tipo Mujica. Mas só o futuro vai dizer se Dilma vai acertar ou errar”. E agora, José?